Pages

METÁFORA

Vi a aflição estampada em seus rostos,

os dedos claudicantes a tentar pegar objetos aleatórios,

como se pensamentos não imaginados pudessem

erguer colunas, levantar paredes, decorar palácios,

encher os palcos.

Vi a aflição estampada no meu rosto,

a impossibilidade de se mover qual caça aprisionada,

como o condenado a morte pode

apenas contrair os músculos e retorcer a pele

durante a execução, enquanto o nariz permanece

gelado, e as mãos suando frio.

Vi o sol escurecer, e as trevas se ocultarem,

enquanto tateava o vazio distante da luz.

Vi suas carnes envelhecerem,

pele e ossos quebradiços, a exalar um cheiro doente

de que embaixo dos escombros não havia sobreviventes,

e os mortos cercavam-se nos lugares tenebrosos.

Vi os caminhos obstruídos por avalanches,

mercenários aguardando de tocaia.

Nos esconderijos possíveis não se pode entrar,

errante nas ruas desertas, os olhos não seguravam

as mãos vazias, nem os velhos guardavam as

crianças nos colos, pois as atenções se voltavam

para as prateleiras vazias do supermercado.

Vi os desdentados rirem-se ao passar,

somente eu ouvi, porque o povo cantava uma marcha

fúnebre embriagado no próprio desespero.

Uma canção alegre os levaria à loucura; a brisa

suave os queimaria como gravetos na fornalha.

Vi o choro, e recordou-me a infância,

quando chorar era possível, recuperar o

fôlego era possível, a alegria era possível,

até mesmo engasgar era possível; havia esperanças,

e a força não se dissipara; nem todos os dentes

haviam sido arrancados da boca.

Vi suas almas combalidas, enfermas,

embaladas pelo silêncio solitário,

aguardando as bocas se encherem de poeira;

por uma palavra, o orgulho derribado.

Entendeu-se o bem por mal,

de bom grado, o mal foi-lhes por bem,

debaixo dos seus pés estavam as palmas

que festejaram a traição, enquanto cabeças meneavam,

e o cativeiro era o descanso de si mesmo.

Não se sustenta o coração tomado à força.

Nem os frutos roubados do ventre.

Ou o perdão entregue por ira,

se o suspiro não serve por pagamento da dor.

Aminha cabeça posta ao laço,

vi-os verem-se, a julgar a minha causa

como se obra das suas mãos, da mesma forma

que se negou o pão ao faminto e leite ao

filho convalescente.

Por sua causa não ouvi meus pensamentos.

A música os silenciara antes mesmo de

se levantarem ou assentarem.


Vi.

Vi,

novamente. Revi.

A figura capturada entre as pálpebras.

O sentido naturalmente desfigurado.

Uma metáfora no lombo do caranguejo.

Onde a vergonha corrompeu o silêncio,

igual a razão morreu a pauladas.



ENCURRALADO

Encurralado, a vergonha bate à porta, como um sinal sem resposta,

Uma explicação sem jeito, vazia, inócua, somente o mal a levar-me a efeito,

À desonra que não ignoro, e se esconde nos gritos,

Mas não abafam a dor que inflige, o sofrimento desnudado,

Pois o que fiz divide-me, e as partes colaboram para o temerário,

E a lágrima descuidada, não apaga o dito nem o feito anos a fio.

O torpor camufla-me; na impossibilidade de encará-lo nos olhos,

Desvio-os ao longe, onde não revelem o quanto a minha alma indistinta

Pode refletir-se nas águas turvas da bravata, onde a névoa oculta com traços de civilidade

A fraqueza moral instalada no pecado, os irmãos siameses,

A levar-me ao abandono, ao digladiar insano contra Deus.

O vexame diante da verdade, a olhá-la de esguelha, a esperar o descuido,

Para tomar as rédeas daquilo de mais sórdido construído.

É o canto esmaecido do pardal, a resposta que não vem à tona,

Solapada em toneladas de impurezas,

A desculpa é o favor que me concede continuar por tudo o que passei e não remediei,

O que para trás ficou, segue-me adiante, a fazer-me pior do que fui um dia,

E a chuva a encharcar-me não lava a sujeira e o odor fétido a cobrir-me,

No qual me atolo como um barco encalhado, no refúgio de não poder livrar-me,

Não há como soltar-se sozinho, não há força nem movimento útil,

Apenas é-se capaz de ir mais rápido ao fundo, qual objetivo alcançado,

Restando o grito de desprezo a soluçar em gorgulhos,

O afogar-se no inútil esforço, o descontrole de não ter o escape,

É a desculpa para insistir nos erros.

Já senti isso muitas vezes, passei por isso outras tantas,

Basta seguir o mal levianamente, e ele nos levará a imolar até mesmo o que não temos,

É-nos emprestado, será cobrado com juros, e nos deixará nu como terra assolada,

Nem mesmo as cinzas perdoarão, enquanto reviro-me no mover contra Ele,

Pois não é possível o mundo me absolver, se está a cumprir sua própria pena.

A evasiva não passa de pilhéria, é o medo de não parar até ser arrancado e posto no patíbulo...

O silêncio é o risco assumido, o perigo que não se acaba.



VERBO

O Verbo era,

É,

Será,

Nada pode contê-lo,

Nem os anos passados

Ou vindouros,

Nem a vida

Ou a morte,

Nem a luz

Ou trevas,

Nem o mundo

Ou o vazio,

Nem os filhos

Ou bastardos,

Nem a graça

Ou a verdade,

Nem a fé

Ou descrença,

Nem a glória

Ou a plenitude,

Nem o sangue

Ou carne,

Nem a história

Ou a mentira,

Nem o calor

Ou frio,

Nem o bem

Ou o mal,

Nem os anjos

Ou demônios,

Céu e inferno...

Pois antes de tudo,

Foi sempre.


No princípio

Ou no fim.

Nem a eternidade

É-lhe claustro.