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ÚLTIMO INIMIGO
Enviou-me como um peso morto,
A erguer o frio e sem alento
Retrato da alma,
Tornando-me culpado por transportar para longe
O primeiro, o segundo capricho
A ponto de violar o dever superior
De negligenciar a disposição àcida de
Arranjar o vício,
De ambicionar a ternura do mundo e
Apoderar-me da grosseria dos desdenhosos.
Como um vôo alto sem destino
É manter o crédito ilimitado após a falência,
Enquanto se estuda diligentemente a desordem,
O suficiente para manter o prejuízo.
Homens zelosos perdem o juízo,
Escolhem os desejos dos outros,
Compõem excelentes discursos com
A ponderação de escalar pequenas alturas;
Esposam as preferidas metáforas,
Igual ao réu a cumprir penas.
Dentro dos limites nunca valorizados,
As conquistas limitam os apetites
E é natural que a aparência consinta o
Ilimitado,
Onde não sabemos nunca o que possa iludir;
E no cair estreito entre ramos delicados,
Condene-se tudo ao conspícuo melancólico.
O tempo continua sendo um estranho
A negar atender pedidos eternos;
Um jovem triste cuja alma não se pode salvar,
Nenhum milagre a dar-lhe alívio;
Nem se pode comprar a vida casta por preço algum,
Pois a fome é o deserto onde se evoca o
Último inimigo.


ENGANO
Aquela dor faz que não se esquece,
Perpassa entre um analgésico e outro,
Faz constatar que já não há mais cura,
Apenas o sofregar crônico do andar preguiçoso;
Como o leito seco do rio,
Árvore a balançar os galhos sem folhas,
A boca a escancarar o silêncio,
Borboleta sem asas, o molestar insinuoso.
Não se faz de rogado,
Queima, corroi a carne,
Aos poucos, dilacera a alma,
Nem mesmo no alívio há conforto;
Fica-se a esperá-lo seguro do retorno,
E a expectativa é muito mais que um pesadelo.
Não é suposto, nem se suporta,
No desvelo com que acalenta
Há somente a promessa de cuidado,
O laço da última cilada, a instar uma coisa noutra,
Sem abdicar o desatino.


RESGATE
Não há nada próprio para a vida,
Embora as coisas não sejam condenadas,
Parece uma idéia insípida,
Na medida em que consiste o amor limitado
E estreito como o fim do homem
Por cair no domínio condenável.
Por mais comum e vulgar que seja,
Ainda que não faça nenhum som extraordinário
Nem da boca saiam chamas em vez de palavras,
E dos olhos relâmpagos em vez de lágrimas
E do silêncio um trovão insuficiente para quitar a
Dívida impagável.
A obra adormecida jamais acordará na consciência culpada,
Sem dar a impressão de que
O morto se envergonha de voltar à vida.
A face sensível, quando muito,
Entrega-se ao nada,
A uma caridade profana,
Ao costume de escolher o lento progresso,
No retrocesso de buscar a liberdade quando
Se perdeu terreno,
De curar a ferida mortal
Nas doses diárias de veneno,
No diligente empenho de purificar
O coração impossível.
Pequenas vantagens são semelhantes à falta,
Esforços superados aproximam-se de pensamentos modestos,
Nunca se conta as riquezas
Para não serem cobiçadas, pois
Conversas comuns protestam de si mesmas.
Pequenas vantagens nos impedem
De apegar às bagatelas;
O efeito de uma escolha pode ser o
Refinamento da razão ou
O fiasco de simples gorjeta.
A carne morta,
Lavada pelo sangue vertido,
Foi derrotada,
Despertaram as mais fortes aspirações
De que o espírito,
Vencido e dominado pelo amor ardente,
Disposto e ligado perfeitamente,
Sujeita-se à vida.


CURVA
Não consigo ver o fim da curva, se há um fim na esquina,
Talvez o ambulante instale-se, talvez o mendigo estenda o jornal na calçada,
Enquanto as notícias são incapazes de descobrir a alma anônima,
Por entre buzinas, apitos, guinchados e chiados, entre o sol escaldante no asfalto,
Os ocupantes parecem flutuar no elevador, entre respirações contidas e olhares estáticos.
Se o último areal foi pisado por sapatos macios, os pés afundaram na enxurrada,
Arrombadas as portas, qual tranca poderia salvá-las?
Nem o alarido estridente da sirene, nem o estampido distante do revólver,
As algemas no meliante fizeram-no rir, como a receber um presente indesejado,
Que não se pode desprezar, impossível não usá-lo,
Ao balão que cinge os céus, segue-o o limite da vista,
Enfim, o descaso não revela a vala que nos confisca.
Sigo o cheiro ao fim da curva, há um fim na esquina,
Rolando noite após noite na cama, imagens atropelam-se convulsivas,
Nem a modorra e a lassidão dedicada, dá-se ao estupor indistinto,
Afoito como nenhum sentido pode ser outro, pode ser,
Como nenhum ocorrido pode acontecer,
O despertar sem medo pode-se no desvario,
No turbilhão de efeito ocultar-se sem escopo, um ato menos mais que outro,
Girar em sentido às várias pessoas, ponto que se espalha de onde partiu,
Foi enviado, reproduzido, como o curso que se estanca,
Sem disciplina a marcha não dura, o tempo igual à flatulência,
Soltas como versos sem rima, naipes desordenados,
Limites retidos na memória, frases indistintas que a contém.
Condenar o inesperado, dissolver o exílio, ausentar-se dos lugares,
Uma vez no destino, vagar como alguém sem povoado,
O absoluto está perdido, é anterior a cada sensação,
Se houve confusão e há dúvida, absolve-se a saliva no estômago,
Resta ao exército do faraó o mar tragá-lo,
Assim como a lágrima não há de carpir o vermelho.
O argumento sem argumento: replicar o vento,
Dispor-se antes de arranjá-lo.


FÔLEGO
O último não foi o primeiro,
No segundo antes de atingir, escorregou-se em si mesmo,
E em queda-livre parou no fim,
Junto à pedra em que tropeçaria.
O último poderia ser o primeiro,
Se ao invés de servido,
Servisse,
Se ao invés de buscar o primado
Fosse carregado pelos que ao redor o viram claudicar
No caminho plano,
E ergueram, aprumando-o,
Como se endireita o torto sem que sinta.
Anestesiado perceberá que não poderia,
Em mil anos,
Nem pelo maior esforço,
Sair da rabeira posta como sina.
Pelos braços do forte,
Pelos músculos vigorosos,
Houve um repentino pensamento de que não era carregado
Mas andava pelas próprias pernas frágeis.
Num ímpeto desvencilhou-se do que o sustentava,
Rolando ladeira abaixo,
Viu-o afastar como um ponto indistinto no horizonte.
Respirou fundo a poeira,
O último fôlego sem ar.


LIVRO
Corro,
Se não quiser, paro.
Falo,
Se não quiser, resta-me o silêncio.
Choro,
Se não quiser, há um riso.
Como,
Sobra-me ainda a antiga fome.
Bebo,
Do cálice que ele esvaziou por completo.
Porque todos buscam o que é seu,
Não existe um sentimento sincero,
Tudo é um acordo,
Onde cuidar de mim é passar o dia solitário,
Em que imaginar-me brevemente consigo
É combater a vida, próximo à morte.
Corro,
Se não quiser, não paro.
Falo,
Se não quiser, não silencio.
Choro,
Se não quiser, não rio.
Como,
Se não quiser, me sacio.
Bebo,
Do cálice posto a esvaziar,
O gole que me lança ao abandono,
E me torna o doente de muitas saudades,
Menos da aflição que me possuía.
Se quiser, não se ausentará de mim,
Nem a tristeza se sobrepor a mais tristeza,
Oferecerá cuidado para que a confiança não se desvaneça,
E o consolo enviará depressa, porque estou abandonado,
Seguindo a confusão dos que ficam atrás,
Avançando para as últimas fileiras como se fossem primeiras.
Se não corro,
É porque quis parar-me.
Se não falo,
É porque quis silenciar-me.
Aquele cálice que ainda não bebi,
Se quiser, tragarei.
Não me faça revolver o próprio vômito,
Ou imitar a mim mesmo, por não suportar o desastre,
E a minha vocação seria a perda de todas as coisas.
Sacia-me,
Não queira deixar-me faminto.
Esvazia-me,
Não me deixe avançar no pecado, confiar na carne,
Pois quanto mais eu sou, menos me acho nele,
E tenho alcançado os inimigos da cruz.
Se quiser,
Deixarei de seguir os mortos,
De consternar a verdade, furtar o ânimo,
Vagar por lugares sem socorro.
Queira levar-me de volta,
Retenha-me no seu coração,
Porque não tenho escolha,
Se não me conceder o gozo, malograrei perdido.
Agora como antes, serei posto sem esperança,
E a alegria: a boa vontade dos outros,
A pureza por contenção.
Desejo partir se os joelhos não dobrarem,
É melhor que a terra me tenha por um nome sem nome,
Como a lâmpada que nunca acendeu,
A presença que não foi sentida,
O estado primário do que não foi provido.
Não me faça esquecido, porquanto se quiser,
O meu nome inscrito no livro sempre está.


VÍCIO
Algumas disposições da natureza
Pelos costumes prolongados,
Aos atrativos abandonados,
Como a água a esgotar-se na torneira,
A esperar as crianças cansarem dos brinquedos
São crimes maiores ligados a afetos menores,
À profunda irregularidade do pecado persuadir
A sensibilidade mais confinada às fronteiras,
Ao limite onde a mente não discerniu nem se faz discernir.
Bastaria dominar a deformidade interna,
Manter as ações terríveis inanimadas,
Oferecer amarras às coisas perversas,
Reformar a vida relutante
Na companhia das conseqüências inesperadas.
Imitar o olho que nunca viu,
Os pés que não se moveram,
O espírito indômito comprado ao preço
Da miséria eterna;
Assim como armas enferrujadas,
O sorriso desmascarado,
São os giros da incerteza a rodar o mundo,
Da mesma forma que o homem barulhento desce
Silencioso ao túmulo.
O infinito não pode ser alcançado pelo pensamento secreto,
A mentira está muito aquém da verdade, e os sonhos dos fatos,
Onde se pode tomar cada palavra não dita para
Se construir mil castelos ocultos;
Quando ninguém é capaz de negá-los,
Nem se escusa à visitação aberta publicamente.
A palavra proferida é mais do que veloz,
Abala os céus, a terra, o presente e o futuro,
Antes o que outrora se contava,
Não é mais uma sutil desculpa,
Nem a possibilitar a libertação,
Mas a abster-se de si mesmo,
Ou recuar dos muitos atos resolutos para cair na gravidade
Das impressões melhores,
Para despertá-lo de sobressalto;
E do caminho perder-se por descuido.


FINIS
Deram-lhe o rifle, e olhou para ele inculcado,
Deu de ombros, e disparou atabalhoado,
Em cem direções, em nenhuma especifica,
Onde a bala acertar, esse é um bom alvo.
Pode ser na mulher a caminhar distraída,
Ou na criança a rolar a bola pelo chão,
Nem sempre cortará o vazio e cairá inerte sem vítima,
Mas quantos mortos valerão para que não erre?
Tanto faz se o céu estiver azul ou a noite sem luar,
Tanto melhor se na chuva, tanto melhor se no seco,
Na cidade, no campo, no espaço, tanto faz;
Entre amigos ou inimigos,
Inocentes e culpados,
Os brancos pagarão pelos pecados dos negros,
Que serão absolvidos pelos brancos,
E amarrados uns aos outros, esperarão diante dos fuzis.
Não é isso o que ele quer,
Nem outra coisa pode ser,
Qualquer motivo vale o alvo,
Seja o que for qualquer.
Só há uma vontade, que não sabe sê-la,
Esvaziar o pente, e recarregá-lo.
Perdeu-se ao tentar se achar, ou achou-se onde se perdeu?
Como uma galinha ao botar o ovo não saberá o que fazer depois?
Ou o colibri olhará indeciso a flor?
O verme sabe muito bem o que fazer com a morte.
Os peixes sabem aonde nadar.
Cavalos galopam à frente.
O vento não espera a areia se proteger para levá-la em redemoinho.
Há o gatilho preparado, e um dedo desnorteado a apertá-lo.
Há um impulso, um refluxo, sem consciência.
São olhos hipnotizados, faróis apagados,
A luz não os alcança, guia-os a esmo,
Não há lembranças, nem propósitos,
Há um falso prazer, um descontrole,
São mentes inutilizadas, corações descompassados,
A esperança não há nele,
Não há choro nem riso, apenas um esgar diabólico,
E quando o soldado sem alvo,
Apontou a arma para si mesmo,
Ele não suportou o vazio, sem ter onde acertar.
O importante é o alvo, qualquer um.