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FINAL

Todos aqueles anos levados
como carga em lombo de asno,
o ar a esvair do balão rasgado
cacho podre desprendido do galho.


Histórias levadas à vida
fotografias esmaecidas
em álbuns rasgados pelo tempo
cicatrizes a desgastar a alma.


Sob o vinho tinto derramado
os últimos arrancos de tudo
a perpassar glossários caducos
qual o sibilar de bala perdida.


Não há mais condições a cumprir
nem resta nenhum esconderijo
a nau soçobrada na tormenta
multiplica o corpo em detalhes,

à última molécula reduzida.

IMPOSSÍVEL II

Como apagar da memória a voz do passado?
E dissipar as lembranças da mente?
Insistindo em viver como se o fundo do coração
fosse um lugar raso?
A reviver a vida não esquecida,
através de imagens amareladas pelo tempo?


Revogar o que não pode ser suprimido
[é mais fácil fugir do que se arrepender],
Viver um permanente estado de inconsciência,
a abafar a própria voz e os gritos exagerados,
de que o homem finito somente é possível
no infinito,
de que certas coisas não fogem
nem deixam fugir,
de que o acaso não tem forças para ocupar
o lugar da verdade,
nem os atalhos podem levar ao único caminho,
e a coragem não pode ser lançada às ruas,
sem que desça aos bueiros,
assim como os tapetes persas não podem revestir
a baia dos porcos,
sem serem destruídos.


Toda tentativa de se manter vivo é inútil
quando se está morto,
o que se quebrou não se pode reconstruir,
a menos que seja novo,
e o impossível venha a ser.


Por ele, e nele,
viva.

NECROLÓGIO

O vazio escuro, 
na absoluta medida do desespero,
do desejo impossível de fugir,
de mover-se na paralisia
em direção ao ponto luminoso
que avistaria, caso existisse,
na impermeabilidade do repouso.

Não entre sem bater,
nem bata ruidosamente,
para não perturbar o sono,
e ouvindo apenas o silêncio,
não se abra a porta e lhe atenda.

Afaste-se, se tem pernas ágeis,
daquele encontro traiçoeiro,
em que o falso mantém como tesouro
o tempo desgastado inutilmente, 
como palavras perigosas a afiar a lâmina,
enquanto o mal apressa-se em persegui-lo
na verborragia desenfreada.

Sim, sim! Não, não!
o que passar disso é embaraço,
não se supera o problema pelo engano,
nem a dúvida pelo desacordo.

Como aquele que se desviou,
não creu no que deveria crer,
nem considerou negar os anos que não viveu,
mas correu da direita para a esquerda,
em passadas preguiçosas,
um longo percurso para abraçar uma estranha,
sem sentir-se traído pelas recordações evanescentes,
quão repetições de uma obra inacabada.

A antítese de si mesmo,
sendo aquilo que nunca será, 
mas sendo tudo o que é...
um punhado de terra lhe sobreveio.

DEVO-TE A TI

Se agora o sorriso é jubiloso 
e não mais os dentes renhidos, 
devo-o a ti.
Se o vento refresca-me a alma 
e não ouço mais os trovões, 
devo-o a ti.
Se as mãos unem-se em harmonia
e trabalham juntas na mesma vontade
exercitando a justiça
e não a jabear nervosas
mas entrelaçadas na verdade.
Se o coração expurgou 
e o sangue não está a ferver em vícios.
E aquele momento se eternizou 
e não mais o esquecimento resistirá.
Se hoje não estou mais morto
como era outrora.
Se sou, sou em ti,
como nunca fui antes 
mas devo-te 
porque em ti vivo 
movo e existo.
Sem ti, 
o que seria de mim?
Não me lembres daqueles dias
nos quais desfalecia como moribundo 
agora sou teu 
e nada me fará voltar ao vômito 
de onde fui tirado 
lavado e vestido em roupas brancas  
a olhar-te, frente a frente 
assim como sempre 
olhou para mim.
Se sou, és porque
tu sempre foi e 
jamais poderia não ser
o eu sou.
E devo-o a ti.  

PAPÉIS

Folhas imóveis perdidas
entre pétalas atraídas
a abandonar o eco desertor
a contender noites recortadas
antes da última ladeira descida.

Verdade oferecida em pagamento
uma e outra arrastada ao lado 
a honra impelida
faz a norma eliminar o vento.

Formas oblíquas queimam-se à raíz
a revelar figuras geométricas
um ou poucos caracteres à vista
como o vagar das causas singulares.

Amores ornamentais cultivados 
em canteiros estreitos
não imitam o laço do passarinheiro
do antiquado alfeizar desviam-se
das mãos mal-vedadas do fustigador.

Retem-se o que se perdeu
na vocação fora do tempo.

FINGIR

O que fazer a respeito?
Se os donos dos cinemas deveriam proibir
os escandalosos e violentos,
mas preferiram iluminar a sala
com grandes holofotes?


Acaso não são os herdeiros do mundo,
em que o sentido verdadeiro da natureza
é colocar em serviços as partes caducas do seu tempo,
sem constituir nada além da arruaça?


Magos de uma segurança privada,
da novidade sem esperança,
enquanto se amontoam escondidos no
galho cerrado, encolhidos, em si mesmos.


A não sobrar nada, nem o que recolher.

APENAS UMA VEZ

O destino não selado,
na dúvida por um instante,
eram duas tentativas correlatas
de se escrever a história
ao passar daquilo que aconteceu.

No prognóstico impreciso
aspectos reais não são o mesmo que delírio.

Toda condenação é um ato de pureza
onde o perdão não pode ser tocado
nem motivos reivindicados,
a se salvar por coincidência
ou a trôco de nada.

Cedo ou tarde a autoridade triunfa
pelo único nome a atravessar as épocas
antes do tempo e da fundação do mundo
na ordem por muitos ignorada
mas sustentada na palavra.

Determinou a origem e o fim
como estrada aberta em mata virgem
tão longa que falta fôlego imaginar,
homens perdidos, unidos na fé,
uma vez, como a dada aos santos.

Mas do que se passou não há lembrança
nem suspeita
quando no livro aberto
nenhuma ausência for sentida.

A necessidade de reparar
não precipitou o desfecho,
ainda que sempre estivesse escrito.