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ANTES, DEPOIS

[1]

O domínio do pecado,
na liberdade de não ser livre,
enquanto se sujeita à morte,
como fruto podre da velhice.

Não se vive o tempo longínquo,
em suspeitar o outro espreitá-lo,
a muito se aprovou o que não fez,
e censurou o que não foi feito,
o bem como sinal de que virá depois,
quando o homem vendido no pecado
for no sangue reavido.

Miserável homem!
Que na vida não se livrou da morte,
tem o mal como companhia constante,
como sitiado por inimigos de batalha,
preso como coisa esquecida
na consciência imperceptível da carne.

[2]

A pregação não pode menos que a ordem,
a doutrina não pode menos que a palavra,
e a razão para acreditar não está no indivíduo
nem nos efeitos da vontade,
mas diante da verdade que se tem ouvido,
pode-se entendê-la até as raízes da fé
uma vez comunicada pela graça.

Ao ouvir palavras de vida,
quando ainda estava morto,
antes mesmo de existir,
seu lugar estava reservado
na unidade do corpo.

Por alto preço foi comprado,
quando ainda não valia nada.
Andando agora segundo o espírito
não é mais um condenado,
mas co-herdeiro da glória porvir.


NÃO PENSAR
Descansar e não pensar,
repousar na esperança,
sentir a vida até onde for trazido,
no princípio, no meio e no fim,
como se já estivesse longe
perdido no fundo do coração
sem o direito ao perdão divino
a dispor as coisas lado a lado
num último pensamento forjado:
o de não pensar.

Enquanto se morre.


ELEIÇÃO
Desde o princípio
Pai
Filho
Espírito Santo,
o Deus triuno
(impossível para a mente humana),
escolheu a sua família
antes da fundação do mundo.

E me chamou pelo evangelho,
escolheu-me sempre em Cristo,
para alcançar a sua glória.

Por seu eterno e imutável propósito,
fui impelido, e assim, quis.


GALOPE
Não é esse o castigo esperado
A voz que se faz ouvir no topo do carvalho
Os prados  a chorar a seca dos dias
a consumir os palácios,
a retirar os trilhos de ferro e carregá-los por
quatro noites, e depositá-los nas
cinzas da cidade perdida.

O fogo a correr pelos vales
Por três vezes quebraram ferrolhos,
tomaram das mãos as alianças e
deram-nas aos inimigos como a
preservar a honra em conserva.

O calor dilatou-os por três
A dor multiplicou-se por quatro
Na tempestade, os alaridos da batalha
A cal derramada nas feridas, os
ossos queimados.

No meio deles e fora deles
Entre eles e sem eles
Todos e nenhum rejeitaram e
não guardaram a sua lei,
enganados pelas suas mentiras
perambularam desnorteados
como almas em quarentena.

Porque se vende a justiça por qualquer dinheiro
Porque se vende o pobre por um hambúrguer
e se morre de fome suplicando um
pouco de pó sobre a cabeça.

As roupas empenhadas e
manchadas pelo vinho tinto,
são raízes puxadas por baixo da terra,
a tornar moribundos os frutos e as folhas vivas.

A fuga é o cavalo montado,
a galope no precipício.


DIVISOR 
O segundo não é o sexto
Primeiro entremeio a palavra
O sumo veio a tempo
escorrido nas casas forradas
dispersas no deserto
como roupas de várias medidas


O pouco recolheu o muito
A fome se fartou no saco furado
Ninguém se aqueceu na
madeira molhada
Dissipou-se o orvalho, o sopro


O vigésimo sombreou o quarto
No ano dos meses fastiados


O sétimo não é o oitavo
A noite é o dia
Diante dos olhos
o que restou era o nada
que se via e não se tocava


Daqui a pouco
o último será o primeiro
o maior igual ao menor
No lugar cercado de ânsias
a pergunta não tem resposta
Ponto morto


Se alguém pejar o nono
não haverá pedra sobre pedra
nem vinte contra dez
em vez de cinqüenta, doze


Céu e terra ordenados
Pela segunda vez
a figueira não deu frutos
à romeira
Desde o dia em que se fundiu
ao riso dos outros



ADOPTAR
Amei, e não amei
tenho no peito a tristeza e a dor contínua
de que poderia eu mesmo ser maldito e
por amor receberia as suas culpas
ainda que tenha motivos para não amá-los
mesmo que a raiva os transforme em inimigos
e me torne hostil
enquanto os ouvidos moucos desprezarem as
promessas benditas, os olhos forem buracos ocos, e
a língua a difamar a justiça daquele que chama,
não passarão de defuntos em que as velas acesas
as súplicas repetidas, velarão suas mentes mortas, e
de nada adiantará o choro convulsivo das carpideiras
nem o riso ébrio dos inconvenientes
se Deus não se compadecer e restituir-lhes
a vida que não tinham.

Se caíram, quedei-me sem possibilidade de escolha
nos seus pecados participei ativamente
cedi quando não mais resistiram à tentação sofrida
pequei quando não havia a chance de não-pecar
ajudei-os a preservar aquilo que sabiam tão bem
na queda direta que os levaria ao chão
na falsa neutralidade da ordem distorcida.

Estão postos entre o bem e o mal
não conheciam o bem possível, mas
sucumbiram à possibilidade do mal
desconhecido.

Pela não-liberdade escolhida, do ponto de vista
da influência necessária e inevitável
não depende de quem quer ou de quem corre
nem do tempo contado de maneira alguma
mas daquele que tem a promessa, a aliança e a glória.

Para que desse a conhecer as suas riquezas
nos que são seus
para que desse a conhecer o seu poder
para que suportasse com muita paciência
os que não são seus
a destinar uns e outros para os lugares
que dantes preparou.

Mas ele diz:
Manifestei-me aos que não perguntavam por mim
Fui achado pelos que não me buscavam
Para que entre os remanescentes sejam trazidas as
alegres novas de coisas boas.

O inimigo amei como ao amigo
selado pela afeição perene
daquele que estendeu as mãos para
fechar as portas do abismo e trazer-me
dos mortos a Cristo, mesmo nos confins do
mundo, nunca serei confundido.


QUESTÃO
Em quais condições o homem é livre?
De pecar estando livre de Deus?
De não pecar estando livre de Deus? 

Até que ponto o homem é livre de Deus
para escolher pecar e não pecar?

Até que ponto Deus é soberano para fazer
com que o homem peque e não peque?

Até que ponto o homem pode ser livre
sem ferir a soberania de Deus?

Até que ponto Deus é soberano
e o homem livre?

Até que ponto a natureza humana pode determinar
o grau de liberdade do homem em relação a Deus? 

Ou se está a falar de coisas que
se opõem e se anulam? 

Deus é soberano.
E o homem não é livre.
Eis a questão.





A PALAVRA

Onde está o refúgio?
E o socorro no momento
da angústia presente?


Quando o trovão não emudece,
nem a terra se muda,
ou o mar faça-se abrir
na escuridão perturbadora?


O silêncio não é o fim da guerra
nem mesmo a trégua,
em que as vozes se calaram
por esquecer o grito.


Antes, os pensamentos são sepulturas
de palavras mortas,
onde a mente recebeu a pintura
grotesca e rebuscada,
do juízo desfeito em prisão.


A palavra não se media pelo
soprar do vento,
pelas dores do parto,
a mão cheia de sangue,
os bens entregues ao louco,
mas por quem a conhecesse.


Inclinem-se os ouvidos,
fecha-se a porta dos lábios,
e os olhos contemplem,
para que laços não amarrem,
nem a alma se parta como
a lenha na lâmina do machado,
e não seja apanhada na rede.


A rocha é a palavra que seus
dedos esculpiram na rocha.


O esconderijo sem fuga.





TEMPO
O tempo não se fatiga,
jamais dorme ou descansa,
nem precisa de auxílio,
não usa bengala ou
se deixa carregar na maca,
ou se lança inerte à cama.

É como o curso d'água
no leito do rio,
a irromper constante,
mesmo caudaloso
a nos apressar,
mesmo minguado
a nos reter.

Onde os passos apressados
não combinam,
onde o estancar teimoso
não pode se partir.

O tempo é uma ponte
que nos leva da fonte
à foz,
as vezes em arroubos,
noutras, complacente,
a escavar barrancos,
erguer trincheiras,
a cortar o sopé do lugar escarpado,
derribar os limites reservados,
separar o barro,
misturar os detritos amontoados.

O tempo carrega montes e vales,
vida e morte,
o perdido e o achado,
o pronto e o inacabado.

Há espaço para o que se foi,
para o que está presente,
e ao que ainda não veio.

É o fluído estanque
na botija,
de onde a torneira jorra,
incapaz de saciar a aridez
do sedento.

Não se pode tê-lo
nem querer mais.
Fartar-se: o sinal de que
o tempo já chegou.

Avidez, pode ser o sinal de
que ele está a fugir.

E não resta mais,
tempo.




VONTADE
A vontade livre,
livre da vontade,
no vazio e o nada,
deixada ao acaso,
sem base,
como se ter vontade?

A liberdade de não ser,
nem poder se ter,
a vontade não subsiste
sem influência,
sem influência não há
vontade,
sem vontade não há
responsabilidade,
a sorte nega as duas,
e as duas negam a sorte.

Ainda assim,
há a vida e a morte,
na vontade e na sorte.

Deus controla as duas,
e tudo o que representam,
seja o início e o fim,
por sua vontade.


AVISO


Aviso: não siga!


Estanque.

Volte.

Mas não olhe para trás.

Pise o mesmo caminho,

do qual dantes quis fugir,

aonde corriam as pernas,

e o tremor levantava poeira.


Aviso: não siga!


Nem em vinte dias,

nem ontem ou amanhã,

ou nos próximos cem anos.


Não volte àquele lugar,

porque os amigos perderam-se

no instar da bocada a

devorar o cachorro-quente,

e a Coca-Cola não conteve o esgar.


Aviso: não siga!


É Deus livrando-o.

Mesmo que ele não seja assassino,

mesmo que o celular não toque novamente,

nem lhe devolvam o sono desviado,

e a violência serene.


Mesmo que não entenda o seu riso,

nem o nervosismo a contrair-lhe a face,

e sejam restituídos os minutos preciosos em tempo.


Aviso: não siga!


Não é uma advertência,

mas uma ordem.

Não é provável,

mas certeiro.

Não é impossível,

mas para que não aconteça o iminente.

Não é o delírio.

É profecia.


Quem tem ouvidos, ouça.


Aviso: não siga!


Porque Deus não escreve

certo por linhas tortas.


Ele escreve, certo!


Não é um aviso.

Aconteceu.


Para que a surpresa

Não lhe pegue imprevisto,

e o aviso não seja

o repentino epitáfio

entre as lágrimas chorosas

dos que o amam.


Aviso: siga-O.




FATAL

Gravemente pecou;
Chorou as lágrimas solitárias na noite inimiga,
A festa era porta fechada onde habitava a aflição,
E os suspiros desolados do errante repousavam nos caminhos tortuosos e devastados,
Onde o socorro não alcança, onde o fim não é lembrado.
As mãos folheavam o álbum, os retratos de tempos antigos,
O papel exaurido e as cores desbotadas pareciam zombar da ruína em que se tornou.
Gravemente pecou;
O pão, a nudez, o ouro no pescoço, a beldade, eram o troco da alma declinada,
Os ossos esmagados, a carne enfermada não podia mais comprar,
Nem mesmo adubar a grama, nem afastar a cerca ao redor.
A armadilha presa aos pés, avalanche sobre a cabeça,
Velhos mortos desatavam águas dos olhos, jovens convocavam a derrota na última batalha,
Vestir-se de trapos enquanto as luzes expiravam sorrateiras,
E a treva revolvia as entranhas como o fogo consome a lenha úmida.
Gravemente pecou;
A semente rejeitou a terra,
Mães arrastaram filhos pelas ruas,
A boca cuspiu fora os dentes,
No assobio, cabeças meneadas chocaram-se com muros,
E não se podia escapar da última palavra: a loucura não sara.
Multiplicou-se a ira de Deus,
Deu solenes gritos ao ver o lugar destruir-se,
Gemeu diante do esforço vão de quebrar os grilhões,
Devorou o dia pensando na noite, entrou por onde jamais sairia,
Guiou-se como alvo às flechas, fez um prato fundo de areia e lodo,
Escondeu os ouvidos da sinfonia como se esmigalhasse o único troféu.
Gravemente pecou;
A vida pulverizada como metal limado,
Esperar razão quando sobrevêm amarguras,
Põe a língua no pó, persiga as nuvens no céu,
Não se deixe fugir da morte, e ponha-a a salvo depressa,
Pois o castigo espreita, prestes a abater a caça implacavelmente.
Polir o lixo, a culpa não pode ser aplacada com uma desculpa.
Gravemente pecou;
Desviou-se, fugiu, andou lentamente erradio, perseguiu ciladas,
A pele presa aos ossos como cão vadio, sem dono,
Foi-lhe posto o último fôlego, o negrume a vaguear como cego tocando o vazio,
Debaixo da sombra viu covas enfileiradas, nunca mais se morará ali,
Serviu-se o alimento, e água suficiente para acabar com a sede,
Porém, contaminado pelos seus pecados, cumpridos os seus dias,
Consumiu-se no fim como a descobrir uma recompensa... que não chegou.
Gravemente pecou.



PRAGMA
Não há muito o que dizer quanto a isso,
nem muito com o que se preocupar,

em certo sentido a necessidade repousa
sobre
o alicerce incoerente, em que o
eclético pode
estar em um ou outro
lado da ponta,
pode estar reunido ou
separado,
e ainda que não pareça funcionar,

e reflita a mentira mais obscuramente recuperada,

é como o alicerce erguido inadequadamente

no pântano.


Diante do arcabouço das escrituras
nenhuma
mentira pode ser desenterrada,
nem a verdade
pode-se enterrar,
a menos que o eclético seja
posto de
ponta-cabeça, a juntar os retalhos
como
numa colcha prestes a se rasgar.

Deus tem dado a resposta.





EVOLUÇÃO
Faltam tábuas suficientes,
faltam pregos necessários,

há tábuas sem pregos,
pregos sem tábuas,

martelos sem cabeças,

cabeças sem cabos.


Nunca suficientes.


Há pregos tortos,

e tábuas tortas,

e martelos leves demais.


Tudo imprestável.


Outros são tão pesados que

se é impossível levantar.

As serras não têm dentes,

puas não realizam furos,

e as brocas são planas,

enquanto as chaves não
torcem as fendas,
nem as lixas alisam as crostas.


Mas todos esperam
por
mesas e cadeiras,
e elas o marceneiro,
que
ainda não foi concebido.




MODELO
O oleiro e o barro,
o barro espera o oleiro,

a água a lavar o barro,
enquanto o barro a esperar o oleiro,
enquanto o vaso espera o barro,
e o vendedor a esperar o vaso,

enquanto a flor agoniza nas
mãos do oleiro.

Que não amassou o barro,

não fez o vaso,

apenas arrancou a flor,

porque todos disseram
que
era advogado,
enquanto esperavam o oleiro.




CABER
Frio,
Pés em modorra,
O silêncio,
A contemplar as pás girar.
Latido,
Revolve as tripas,
O sentido,
A latejar as pontas dos dedos.
Risco,
Lança-se ao desperdício,
O sonido,
A empilhar calafrios.
Rude,
Fustiga a pedra solta,
O sólido,
A fragmentar-se no moedor.
Freio,
Pedágio em terra estéril,
O sino,
A roer o osso.
Livre,
Rende-se à dor infinita,
O sono,
A fatigar em penas.
Inferno,
Não é apenas o torpor dos delírios.



METÁFORA

Vi a aflição estampada em seus rostos,

os dedos claudicantes a tentar pegar objetos aleatórios,

como se pensamentos não imaginados pudessem

erguer colunas, levantar paredes, decorar palácios,

encher os palcos.

Vi a aflição estampada no meu rosto,

a impossibilidade de se mover qual caça aprisionada,

como o condenado a morte pode

apenas contrair os músculos e retorcer a pele

durante a execução, enquanto o nariz permanece

gelado, e as mãos suando frio.

Vi o sol escurecer, e as trevas se ocultarem,

enquanto tateava o vazio distante da luz.

Vi suas carnes envelhecerem,

pele e ossos quebradiços, a exalar um cheiro doente

de que embaixo dos escombros não havia sobreviventes,

e os mortos cercavam-se nos lugares tenebrosos.

Vi os caminhos obstruídos por avalanches,

mercenários aguardando de tocaia.

Nos esconderijos possíveis não se pode entrar,

errante nas ruas desertas, os olhos não seguravam

as mãos vazias, nem os velhos guardavam as

crianças nos colos, pois as atenções se voltavam

para as prateleiras vazias do supermercado.

Vi os desdentados rirem-se ao passar,

somente eu ouvi, porque o povo cantava uma marcha

fúnebre embriagado no próprio desespero.

Uma canção alegre os levaria à loucura; a brisa

suave os queimaria como gravetos na fornalha.

Vi o choro, e recordou-me a infância,

quando chorar era possível, recuperar o

fôlego era possível, a alegria era possível,

até mesmo engasgar era possível; havia esperanças,

e a força não se dissipara; nem todos os dentes

haviam sido arrancados da boca.

Vi suas almas combalidas, enfermas,

embaladas pelo silêncio solitário,

aguardando as bocas se encherem de poeira;

por uma palavra, o orgulho derribado.

Entendeu-se o bem por mal,

de bom grado, o mal foi-lhes por bem,

debaixo dos seus pés estavam as palmas

que festejaram a traição, enquanto cabeças meneavam,

e o cativeiro era o descanso de si mesmo.

Não se sustenta o coração tomado à força.

Nem os frutos roubados do ventre.

Ou o perdão entregue por ira,

se o suspiro não serve por pagamento da dor.

Aminha cabeça posta ao laço,

vi-os verem-se, a julgar a minha causa

como se obra das suas mãos, da mesma forma

que se negou o pão ao faminto e leite ao

filho convalescente.

Por sua causa não ouvi meus pensamentos.

A música os silenciara antes mesmo de

se levantarem ou assentarem.


Vi.

Vi,

novamente. Revi.

A figura capturada entre as pálpebras.

O sentido naturalmente desfigurado.

Uma metáfora no lombo do caranguejo.

Onde a vergonha corrompeu o silêncio,

igual a razão morreu a pauladas.



ENCURRALADO

Encurralado, a vergonha bate à porta, como um sinal sem resposta,

Uma explicação sem jeito, vazia, inócua, somente o mal a levar-me a efeito,

À desonra que não ignoro, e se esconde nos gritos,

Mas não abafam a dor que inflige, o sofrimento desnudado,

Pois o que fiz divide-me, e as partes colaboram para o temerário,

E a lágrima descuidada, não apaga o dito nem o feito anos a fio.

O torpor camufla-me; na impossibilidade de encará-lo nos olhos,

Desvio-os ao longe, onde não revelem o quanto a minha alma indistinta

Pode refletir-se nas águas turvas da bravata, onde a névoa oculta com traços de civilidade

A fraqueza moral instalada no pecado, os irmãos siameses,

A levar-me ao abandono, ao digladiar insano contra Deus.

O vexame diante da verdade, a olhá-la de esguelha, a esperar o descuido,

Para tomar as rédeas daquilo de mais sórdido construído.

É o canto esmaecido do pardal, a resposta que não vem à tona,

Solapada em toneladas de impurezas,

A desculpa é o favor que me concede continuar por tudo o que passei e não remediei,

O que para trás ficou, segue-me adiante, a fazer-me pior do que fui um dia,

E a chuva a encharcar-me não lava a sujeira e o odor fétido a cobrir-me,

No qual me atolo como um barco encalhado, no refúgio de não poder livrar-me,

Não há como soltar-se sozinho, não há força nem movimento útil,

Apenas é-se capaz de ir mais rápido ao fundo, qual objetivo alcançado,

Restando o grito de desprezo a soluçar em gorgulhos,

O afogar-se no inútil esforço, o descontrole de não ter o escape,

É a desculpa para insistir nos erros.

Já senti isso muitas vezes, passei por isso outras tantas,

Basta seguir o mal levianamente, e ele nos levará a imolar até mesmo o que não temos,

É-nos emprestado, será cobrado com juros, e nos deixará nu como terra assolada,

Nem mesmo as cinzas perdoarão, enquanto reviro-me no mover contra Ele,

Pois não é possível o mundo me absolver, se está a cumprir sua própria pena.

A evasiva não passa de pilhéria, é o medo de não parar até ser arrancado e posto no patíbulo...

O silêncio é o risco assumido, o perigo que não se acaba.



VERBO

O Verbo era,

É,

Será,

Nada pode contê-lo,

Nem os anos passados

Ou vindouros,

Nem a vida

Ou a morte,

Nem a luz

Ou trevas,

Nem o mundo

Ou o vazio,

Nem os filhos

Ou bastardos,

Nem a graça

Ou a verdade,

Nem a fé

Ou descrença,

Nem a glória

Ou a plenitude,

Nem o sangue

Ou carne,

Nem a história

Ou a mentira,

Nem o calor

Ou frio,

Nem o bem

Ou o mal,

Nem os anjos

Ou demônios,

Céu e inferno...

Pois antes de tudo,

Foi sempre.


No princípio

Ou no fim.

Nem a eternidade

É-lhe claustro.



AXIOMA

O imitado não pode ser exibido nem encontrado, os

atributos não manifestos estão reclusos em sua natureza

proibida, de forma que o falso traga o consolo pelo qual

nega-se a si mesmo, a tática de que aquilo que é não é

mas parece ser, a unidade entre a mentira e a verdade,

como se possível prezar o que se rejeita até o ponto de

constranger a razão à naturalidade invertida.


Página e mais página não folheada, incomodado com o

alto relevo da lombada, com as situações limítrofes e amenas

não reveladas, com a fraqueza do que foi preparado, o poder

violento ultrapassando a mente obliterada, em que o norte

se entregou à reles concepção das trevas, e os raquíticos acenaram à

morte enquanto os decrépitos amavam-na mortalmente.


No fundo, o covarde é seguido pela turba de bajuladores, onde os

tolos se perdem em meio aos impenitentes, onde cegos guiam cegos

ao precipício tenebroso, onde os inocentes [em nome da ignorância]

são culpados dos piores pecados, perdidos no discurso

malicioso do interesse cativo ao anfibológico.


Carnes a gritar loucamente, numa teia dissimulada em que a verdade é

reciclada à revelia da revelação, a distorção pode-se

ouvir em freqüências antagônicas; do distinguível deve-se manter

distância até não ser necessário explicar nem denunciar o estratagema

maroto de se ocultar o lógico.


A Palavra emudecida pelos ecos dos ditames tolerantes, a

tolerância limitada pela intransigência condescendente,

que torna a razão na incapacidade de se criar a resposta,

porque a pergunta feita foi desfeita pela proibição

tolerada, a fé calada no mundo sem inspiração.


Na totalidade da verdade, o evangelho não pode ser fatiado,

nem o falsamente interpretado à completude manifesta,

ou o objeto se passar por um fragmento descontextualizado,

e a mínima parte verdadeira aglutinada à maioria mentirosa

para se construir um complexo caviloso.


Ele está imune aos ataques, às investidas mais precisas,

nenhuma proteção em meio às artimanhas ardilosas,

já que doutrinas renegadas anunciam-se ao abandono,

como o pó ao vento é lançado.


Imagem perene: Cristo perfeito,

sem precisar ser defendido mas proclamado,

onde não há escândalo ou vergonha, desde que

exposta a palavra absoluta.


ALERTA
Correr da imagem expressa, como fugir da vontade
exprimida,
de restituir o amor escasso ao corpo débil
na tela,
de desejar uma razão acusada de transigir
o espaço,
em fingir estar de acordo na mentira.

O segundo estágio é a prova de que os suspeitos,

ao substimar a generosidade, se viram condenados
a
conhecer todos os disfarces, de ver a missão
fracassada
não melhorar em nada a opinião de si
mesmos, manter intactos os contumazes defeitos.


À primeira vista, a surpresa confortável de que o exterior
estaria varrido e limpo, e de que
o interior seria um lugar
para se olhar ao longe,
onde os nomes verdadeiros fossem
esquecidos
e os pedregais aplaudissem os moinhos fumegantes.

A queixa não feita foi recebida pelos atos
que não lhe
diziam respeito,
métodos não observáveis de cura eram
alertas
das almas diligentes dos homens, entre uma e outra
oferta de tristeza colorida, não aumentava
a expectativa
dos doentes, nem apagava os desvios.


Há um número impossível, um mapa de caminhos
desconhecidos,
uma esperança apoiada no hábito de que
algumas promessas tortuosas fossem as
palavras objetadas
pelos antigos, luz em meio a trevas,
a afastá-las das fontes
de águas sulfurosas,
como leite a escorrer
de grandes mamilos.


Longos parágrafos não têm fim,
cegos deliberadamente
recusam-se a ver
os conselhos seguros pelos críticos,
como cistos restituídos às almas miseráveis.


Algum momento ainda não recolhido à prova concreta
do fim dos tempos,
de que o estágio conclusivo ainda demora,
e agora a ocasiao está avançando,
cada vez mais aquele ardor
por arrombar
a porta. Deve-se estar pronto. E dispensar
parentes e filhos enquanto se dança
junto à fogueira, a esperar
dividir os compassos no movimento preciso
de adiar a última hora.



INFINITO
Calma, o mar se tornou ainda mais tempestuoso,
Profundo, o sono não pode ser interrompido por ferroadas,
Fuja enquanto se agarra às amarras do mastro,
Lançam-se as cargas, o vento não quer o mar calado,
O silêncio é o medo de lembrar
Que a sorte ruiu como o casco em pedaços.

Calma, o mar não vai se aquietar
Até que as aves dêem voltas na terra,
E se cansem de ruflar as asas,
E recordem que o céu não lhes é permitido,
De que a terra seca é temerária.

Calma, o mar está embravecido,
Por minha causa, a fúria não cessou,
Os remos se perderam na tormenta,
Salva-vidas definharam ao peso das almas viciosas.

Calma, o mar não se aquietará,
Levantai rogos e preces,
Nossas cabeças estão postas sob sangue inocente,
Vede, ele ofereceu-se em sacrifício,
A causa de não ser eu consumido em desgraça.

Calma, deixou o mar a sua ira,
Ele declarou que fez tudo por mim,
Até mesmo o mal sobreveio por sua causa,
E temi... Porque, se enfurecer de novo, o que farei?

Calma, não há como desertar, ninguém há de acolher,
A passar por cima de mim, a gratidão exibida
São lágrimas encerradas por ferrolhos no coração.

Calma, o inferno cercou-me, com a angústia dos perdidos,
Diante dos olhos, os lamentos são falsos sacrifícios,
Como a recompensa do ingrato, o pagamento do estelionatário,
O cordame enrolado ao pescoço, o ofício do morto.

Calma, gritei do ventre a minha oração,
Tornei a ver a sua misericórdia,
Voltou-me a vida às entranhas, a resposta aos ouvidos,
Fui convocado à sua presença, retido no tempo indefinido,
Onde se desenrola irreversível o perdão definitivo,
Como o compasso do andar imutável, sem decorrer o fim.

A obra verdadeira testifica:
Do Senhor vem a salvação.